A liĂ§Ă£o de casa por fazer
As notas baixas da sinhazinha da fazenda do boi Caprichoso na segunda noite podem ser expressĂ£o de algo que chama atenĂ§Ă£o nos dois bois.

Dassuem Nogueira, especial para o BNC Amazonas
Publicado em: 05/07/2023 Ă s 10:13 | Atualizado em: 05/07/2023 Ă s 15:57
As notas baixas da sinhazinha da fazenda do boi Caprichoso na segunda noite podem ser expressĂ£o de algo que chama atenĂ§Ă£o nos dois bois.
Representatividade, ancestralidade, diversidade, decolonialidade, resistĂªncia. Essas foram as palavras mais repetidas nas apresentações de Garantido e Caprichoso.
No entanto, o que elas querem dizer? E por que elas estĂ£o sendo enfatizadas na disputa do festival?
O objetivo Ă© Ă³bvio.
Os bois fazem o espetĂ¡culo, sobretudo, para os jurados, pois o objetivo Ă© vencer. Mas, ao se preocuparem em se afinar aos discursos militantes e debates acadĂªmicos do universo dos jurados, acabam esquecendo de fazer a liĂ§Ă£o dentro de seus currais.
O que pode parecer contraditĂ³rio, justamente, para os jurados.
A entrada da filha do amo do boi Caprichoso Ă© cheia de significados racistas: a sinhazinha, justamente, a menina branca, surge na alegoria vestida de Oxum, a rainha negra dos YorubĂ¡s.
Sempre que algo assim acontece, devemos nos perguntar: mas nĂ£o tinha uma pessoa negra para representar um sĂmbolo negro?
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Abaixo lhes conto que tinha!
A corte cĂªnica da sinhazinha, nessa noite, a segunda da disputa na arena, era um conjunto que representava religiosos de matriz afro.
Esses trocaram a sua indumentĂ¡ria em plena arena, quando entĂ£o Oxum se converteu em sinhazinha.
Ou seja, precisamente, os negros em cena vestiram a sinhĂ¡, evocando a imagem das mucamas. E ainda lhe fizeram a corte na apresentaĂ§Ă£o para os jurados.
Imagino que a leitura pretendida tenha sido investir na sinhazinha que, no auto do boi, Ă© a expressĂ£o de riqueza e graciosidade, a representaĂ§Ă£o de Oxum, orixĂ¡ do ouro e da beleza.
PorĂ©m, justamente, o boi preto de Parintins, nĂ£o fez a leitura racial das imagens que evocou na arena.
EntĂ£o, nĂ£o temos um problema estĂ©tico, pois a indumentĂ¡ria estava linda e coerente com a proposta. E nĂ£o temos um problema performĂ¡tico, pois houve uma bela evoluĂ§Ă£o de sinhazinha.
Mas, temos um problema conceitual: o boi estĂ¡ falando de representatividade, ancestralidade, decolonialidade, resistĂªncia, todavia, mostra outra coisa.
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SĂ³ importam os jurados?
Assim, ambos os bois, ao invĂ©s de fortalecer e se juntar a pautas importantes, parecem querer usĂ¡-las apenas para agradar aos jurados.
Na mesma noite, o boi Garantido representou Pai Francisco e MĂ£e Catirina, os elementos negros do auto do boi, como XangĂ´, o rei YorubĂ¡ da justiça, e Oxum, sua inteligente rainha.
Uma imagem poderosĂssima que nĂ£o foi explorada pelo boi Ă altura. Contudo, Ă© a prova de que uma imagem fala mais do que mil palavras.
Na cosmologia YorubĂ¡, Oxum Ă© força das Ă¡guas doces, inclusive as Ă¡guas uterinas, mas Ă©, sobretudo, a inteligente rainha. XangĂ´ se encanta por ela e promete lhe dar o trono. Oxum diz que nĂ£o quer sua coroa, mas a sua cabeça.
No auto, a gestante Catirina estĂ¡ ciente de que Pai Francisco nĂ£o pode lhe negar um desejo. Inteligente, ela nĂ£o lhe pede um boi, mas a sua lĂngua. Em um ato de insubordinaĂ§Ă£o, ela ainda nĂ£o quer qualquer boi, mas o mais bonito. Em um ato de justiça, Pai Francisco mata o boi do patrĂ£o.
Pai Francisco e MĂ£e Catirina do Garantido, outrora representados como cĂ´micos negros, pela primeira vez, vestidos de rei e rainha YorubĂ¡, poderosos orixĂ¡s. A imagem Ă© de um poder simbĂ³lico imenso. Faz-se justiça aos personagens.
Interessante notar que, justamente os elementos negros do auto, nĂ£o sĂ£o item de competiĂ§Ă£o. Mas, a releitura do Garantido demonstra o quĂ£o potente e necessĂ¡rio, para usar outras duas palavras em voga, seria repensar essa condiĂ§Ă£o.
Por isso eu digo: se fizĂ©ssemos a liĂ§Ă£o de casa nĂ£o precisarĂamos ir tĂ£o longe e complexo para falar de pautas importantes.
Foto: reproduĂ§Ă£o/vĂdeo