RL 495 – uma obra, uma vida
Tico, sei que você descansará com a paz sonora e serena que só seus ouvidos puderam alcançar

Publicado em: 21/03/2019 às 23:12 | Atualizado em: 08/07/2020 às 18:11
Por Neuton Corrêa, da Redação
Tico, o meu violão está fazendo muito sucesso. Amanhã, dia 22, fará onze meses que você me presenteou com sua obra-prima.
Era 22 de abril de 2018, quando fui apresentado ao RL 495, ainda em construção.
Três dias depois, uma quarta-feira, iria buscar a peça.
Levei a Darci, convidei o Lino Rodrigues e lamentei que o Cícero Marcos não estivesse no começo da festa de entrega do RL.
Ele chegou depois e o evento ficou melhor, porque já estávamos embalados e o Flamengo não havia perdido o jogo da quarta-feira pela Libertadores com o Santa Fé (0 a 0).
Nesse quase um ano que o violão está comigo, não deve ter passado três meses na exposição que prometi construir para preservá-lo, coisa que você de pronto repudiou: “No! No! No! No haga eso! Él necesita ser tocado para desarrollar el sonido”.
Três meses depois, o Adriano Furtado, filho do meu amigo Aristide Furtado, descobriu a obra e me pediu emprestado para usá-lo na gravação do CD da Ciranda de Manacapuru 2018.
Meses depois, voltou do rio Solimões e ao regressar para casa reacendeu a veia musical do Segundinho.
Depois, foi a vez do maestro Neil Armstrong, que apresentou ao Armstrong Júnior, que casou com o instrumento, tornando-se, por hora, o guardião da obra.
Só lamento que o Neil tenha levado o som do RL para compor as gravações do boi Caprichoso para a temporada 2019.
Poderia ter sido o Garantido o primeiro a utilizar sua obra. Vão me zoar na Baixa, em Parintins. O pessoal de cima vai me zoar, quando souber disso.
Mas tudo bem!
Nem sabe, ontem, ele estava na Orquestra de Violões do Amazonas, numa homenagem a Villa Lobos e à música clássica, no Teatro Amazonas.
Escuta aí, sei que você vai identificar o som do seu RL acompanhando a soprano do Coral do Amazonas Míriam Abade, que cantou Melodia Sentimental, clássico de Villa Lobos.
Sabe, Tico, quando ouvi os primeiros toques nas cordas, acariciadas pelo Lino, notei que o violão falava acanhado, mas senti uma responsabilidade enorme quando o recebi solenemente de suas mãos.
Sobre o som, porém, logo meus amigos músicos explicaram-me: obra de luthier é assim mesmo, o som se abre com o tempo.
Mas não imaginei que se abriria tanto quanto, quando me reencontrei com seu RL no fim no ano passado.
Nem minha ignorância musical impediu de perceber que daquele bojo estava saindo um encantador sonido, tudo diferente do que já havia visto até então.
Nesse dia estava com o Neil, que me disse assim: troca a corda dele, põe um jogo compatível com ele e você vai ver a diferença.
E assim aconteceu!
Olha, não vou esquecer que o RL 495 foi fabricado com jacarandá, cedro e pinho canadense, tem trastes holandeses, escala de ébano e ponte de coração de negro.
Que forma grandiosa de fazer revolução: simples, silenciosa e fabulosamente gritante pela mais refinada compreensão de se fazer som.
Tenha a certeza, Tico, de que você revolucionou a muitos pelos bairros, cidades e países por onde passou, ensinando sua arte.
Meu amigo querido, sua obra está eternizada.
Tico, sei que você descansará com a paz sonora e serena que só seus ouvidos puderam alcançar.
Valeu, amigo! Foi uma felicidade conhecê-lo.
Obrigado pela consideração de ter me tornado o guardião de sua última obra.
Raul Lage morreu na madrugada desta quinta-feira, dia 21, em Cuba.
Registros

Raul, Neuton e o RL

Entrega do RL 495

Raul mostra detalhes do RL 495

Raul, Neuton e Lino

Neil Armstrong e Armstrong Júnior
Texto publicado no Facebook, em 22/04/2018
Aos 72 anos de idade, 18 anos deles vividos na periferia de Manaus, Raul Lage está de volta para Cuba, país que ajudou a sonhar, colaborando com a revolução comandada por Fidel.
Ele deixa Manaus na noite de sábado e no domingo que vem já estará em Havana em busca de assistência médica para uma enfermidade que lhe tira as forças aos poucos.
Raul é responsável pela criação de uma geração inteira de luthieres amazonenses que aprenderam a técnica da construção e reforma de violões incentivada pelo governo cubano.
Raul, colaborador do Partido Comunista de Cuba, saiu pelo mundo, Rússia, Espanha, Noruega antes de fixar residência em Manaus.
Viveu essas quase duas décadas na casa do meu querido amigo e professor Cícero Marcos.
Foi o Cícero que me apresentou o Tico e a Tica, sua esposa. Assim ele chama o casal. E foi pelo Cícero, o Kinho (Francisco de Assis Lima) e pelo Lino Rodrigues que conheci um pouco da história do Raul.
Sei que vocês que me conhecem devem estar estranhando minha relação com o violão que acabei de ganhar e sobre o qual me declaro um guardião.
De fato, não toco nada. Até que tentei por volta dos meus 18 anos. Ainda aprendi e toquei com grande encantamento a Kriptônia do Zé Ramalho, num Tonante, que nem lembro como comprei.
Mas, depois que toquei essa música, o vilão sumiu e, como não tinha que ser, nos separamos, eu e o meu violão.
No entanto, sou marceneiro de berço e quando fui à casa do Cícero, onde o Raul mora, fiquei impressionado com o acabamento fino e com o som único que saía de suas obras de arte.
Anos depois, encontrei o Cícero e perguntei pelo Tico e ele me disse que o Raul estava morando no Rio, no que reagi, apavorado, soltando palavrão de arrependimento: “Puta quis pariu. O Raul viajou, não deve mais voltar a Manaus e eu não comprei um violão dele”, lamentei.
O Cícero, provavelmente, deve ter ter lembrado disso, quando descobriu que o Raul Lage estava finalizando seu último trabalho para angariar os últimos reais para lhe ajudar em sua viagem no próximo sábado.
No ato, fui lá. Aproveitei para passar um pouco do domingo com ele e de hoje em diante me junto a músicos como Diogo Nogueira, Péricles, Kinho e Lino como proprietário de um RL.
Ah, hoje combinamos: vamos visitar o Raul em Havana, em breve.