Ecos do Jorginho
Publicado em: 03/07/2015 Ă s 00:00 | Atualizado em: 04/12/2018 Ă s 19:35
Neuton CorrĂªa*
A noite seria melhor do que a anterior. Havia promessa de que seria. Mais que isso: havia garantia, equipamentos e remédios que asseguravam a certeza do cumprimento da promessa. Porém, madrugada a dentro, Bruno acorda Jorginho no melhor do sono. Deve ter hesitado o que pôde, pensado milhões de vezes, afinal, era um recém-contratado servidor tendo que importunar o chefe.
Bruno mediu prĂ³s e contra e assentiu com sua Ăntima consciĂªncia que a decisĂ£o correta era acordar o chefe. Estava na primeira viagem, tinha que mostrar serviço. O dia seguinte seria a oportunidade que teria para expor suas competĂªncias, que nĂ£o puderam ser plenamente expostas como queria, porque o Jorginho nĂ£o permitiu no primeiro dia.
O Jorginho Ă© diretor de uma importante autarquia do governo federal em Manaus. Bruno acabara de ser contratado e jĂ¡ se destacava em sua Ă¡rea tĂ£o logo chegou Ă repartiĂ§Ă£o, tanto que foi escolhido entre outros mais experientes a viajar com o Jorginho, que antes do embarque o advertiu:
– Bruno, vocĂª Ă© bom de sono?
– Sim, seu Jorge, eu durmo bem.
– Estou te perguntando isso porque a gente vai ter que dividir o mesmo quarto no hotel e meu ronco sĂ³ nĂ£o atrapalha quem dorme antes.
Sem noĂ§Ă£o do que viveria na viagem, Bruno tranquilizou o chefe:
– NĂ£o se preocupe, seu Jorge. Isso nĂ£o vai me atrapalhar, nĂ£o.
A primeira noite dos dois, no entanto, nĂ£o foi apenas a estreia. Foi o teste que o Bruno precisava para ter certeza de que palavra de chefe Ă© um decreto irrevogĂ¡vel. O cansaço da viagem fez o Jorginho querer ainda mais a cama para descansar ao estilo macaco-guariba.
Bem, o Jorginho nĂ£o roncava tanto assim. O estrondo noturno foi aumentando Ă medida que seu atlĂ©tico um metro e noventa e poucos centĂmetros iam ganhando massa, atĂ© nĂ£o mais ser notado pela envergadura, mas pela largura.
A gordura começou a fazer parte de sua vida quando interrompeu sua rotina de atleta e passou a se dedicar ao emprego, onde goza de destaque apĂ³s escalar degraus que sua perspicĂ¡cia lhe permitiram galgar.
Voltando Ă primeira noite no hotel, o Jorginho nem fez a transiĂ§Ă£o da vigĂlia para o sono. JĂ¡ caiu na cama roncando. O coitado do Bruno nem teve tempo de tapar os ouvidos e nĂ£o conseguiu pregar os olhos.
No dia seguinte, com a vontade de explodir com o chefe, Bruno observou o Jorginho acordar, tomar banho e se preparar para o cafĂ©, mas nĂ£o teve coragem. Apenas falou com todo cuidado:
– Seu Jorge, nesse intervalo que o senhor vai pro cafĂ©, o senhor pode me dĂ¡ uma hora?
O diretor achou aquilo estranho e perguntou:
– Aconteceu alguma coisa, Bruno?
– NĂ£o, nĂ£o, seu Jorge. É que eu nĂ£o consegui dormir. O senhor roncou muito e muito alto.
No ato, Bruno foi liberado das atividades da manhĂ£ e com a promessa de que a noite seguinte seria diferente:
– O que Ă© isso, Bruno, nĂ£o precisa ir agora, nĂ£o, descansa aĂ. E, olha, eu vou providenciar umas coisas que vĂ£o resolver essa situaĂ§Ă£o. Sempre dĂ¡ certo.
E assim aconteceu. Com a consciĂªncia pesada, Jorginho foi Ă drogaria, comprou Vick Vaporub pra passar no nariz e no peito antes de dormir, foi atrĂ¡s de um dilatador nasal, daqueles usados por atletas, e antes de deitar asseverou:
– Pronto, Bruno, hoje vocĂª vai dormir como um bebĂª. Com isso aqui, com a ventilaĂ§Ă£o passando livre pelas vias nasais, nĂ£o tem como eu te perturbar.
Jorginho falou isso e foi logo apagando. O Bruno outra vez dormiria depois, mas nĂ£o conseguiu. Tentou pĂ´r fim ao importuno no ato, mas adiou a decisĂ£o de acordar o chefe atĂ© se encorajar e, finalmente, bateu no Jorginho, dizendo:
– Seu Jorge, seu Jorge! Acorde! NĂ£o deu certo. Lave esse Vick do seu peito, tire esse troço do seu nariz. Era melhor como estava antes. O negĂ³cio piorou. Agora, alĂ©m de roncar, o seu ronco tĂ¡ fazendo eco. TĂ¡ tudo ecoando e vai acordar o hotel inteiro.
Ah, pra fechar: o Jorginho perdeu 63 quilos e garante que nĂ£o ronca mais, nĂ£o como antes.
*O autor é formado em Filosofia pela Ufam e mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, também pela Ufam.