Tem direita na esquerda
Para o articulista, muitos indivĂduos de esquerda reproduzem aquilo que a direita defende e por ele mata, violenta e oprime.

Por LĂºcio Carril*
Publicado em: 17/11/2023 Ă s 18:48 | Atualizado em: 17/11/2023 Ă s 18:50
Vem da RevoluĂ§Ă£o Francesa os termos direita e esquerda, conforme era a ocupaĂ§Ă£o dos assentos na Assembleia Nacional. Os partidĂ¡rios do rei ficavam na direita e os defensores da revoluĂ§Ă£o, na esquerda.
O tempo passou e esquerda e direita ganharam significados. NĂ£o Ă© possĂvel conceituĂ¡-las, mas sĂ£o carregadas de significaĂ§Ă£o.
A esquerda se opõe ao status quo, ao regime autoritĂ¡rio das elites, Ă injustiça social, ao preconceito, Ă escravidĂ£o, ao racismo, Ă exploraĂ§Ă£o massacrante do trabalhador.
Ă€ direita, estĂ£o as elites sociais e econĂ´micas, os capitalistas exploradores, os escravocratas, os racistas, os propagadores de preconceitos, os misĂ³ginos, os homofĂ³bicos, os defensores do sistema de opressĂ£o.
Em tempos recentes, uma horda de malfeitores e outra de ignorantes tentaram criar confusĂ£o atravĂ©s de informações falsas, atribuindo Ă esquerda tudo aquilo que enoja e envergonha a humanidade, como o nazismo e o fascismo.
Ora, nazistas e fascistas perseguiam comunistas, etnias judaicas, gays, deficientes, negros, etc. Uma prĂ¡tica construĂda pela direita no mundo. Na França, atĂ© hoje, a direita persegue imigrantes, principalmente aqueles oriundos do continente africano.
Pois bem. NĂ£o Ă© dessa obviedade que quero falar. SĂ£o outras coisas que me incomodam.
Se por um lado a esquerda se significou e construiu valores intrĂnsecos, por outro, vem perdendo força no campo das subjetividades.
Peço licença a uma corrente fundamental da esquerda, o marxismo, para lembrar que objetividade e subjetividade sĂ£o faces de uma mesma moeda. O sujeito histĂ³rico e coletivo Ă© construĂdo pela aĂ§Ă£o humana, logo o indivĂduo se torna imprescindĂvel e nele devemos focar todo trabalho de transformaĂ§Ă£o da sociedade.
O problema estĂ¡ aĂ. Muitos indivĂduos de esquerda, que atuam no campo da esquerda, reproduzem os valores de subsistĂªncia do atual sistema de opressĂ£o, aquilo que a direita defende e por ele mata, violenta, oprime.
A esquerda estĂ¡ cheia de gente racista, misĂ³gina, preconceituosa, homofĂ³bica, que Ă© contra os povos indĂgenas, quilombolas, ribeirinhos, etc.
Essa gente, claro, nĂ£o Ă© de esquerda, mas vem se perpetuando e ganhando espaço num campo contrĂ¡rio Ă sua prĂ¡tica cotidiana e Ă sua consciĂªncia deformada.
O feminismo Ă© de esquerda, mas o machista Ă© de direita. Sua prĂ¡tica Ă© de direita, porque oprime, violenta e mata a mulher. A esquerda Ă© feminista e libertĂ¡ria.
A luta anti-racista Ă© de esquerda, mas o racista Ă© de direita, mesmo que se diga de esquerda
A luta contra o preconceito Ă© da esquerda, mas a homofobia Ă© uma prĂ¡tica de direita, mesmo que o homofĂ³bico esteja filiado ou seja militante de um partido de esquerda.
Em sĂntese, ser de esquerda nĂ£o Ă© votar ou levantar a bandeira de um candidato ou lĂder de esquerda. É muito mais que isso.
Ser de esquerda Ă© uma concepĂ§Ă£o de vida, na qual o sujeito deve incorporar a transformaĂ§Ă£o da sociedade e do mundo a partir da sua prĂ³pria transformaĂ§Ă£o. É um exercĂcio contĂnuo, mas deve ser perseguido por todos e todas que lutam por justiça social, igualdade, solidariedade, amor e fraternidade.
Se nĂ£o for assim, sĂ³ o discurso nĂ£o atrai ninguĂ©m e serĂ¡ sempre uma enganaĂ§Ă£o.
*O autor Ă© sociĂ³logo
Foto: reproduĂ§Ă£o/Wikipedia