Governo aponta suspeita de fraude em pesquisa sobre a cloroquina

Cloroquina Ă© um medicamento defendido pelo presidente Jair Bolsonaro como a soluĂ§Ă£o para o tratamento das pessoas infectadas com o novo coronavĂ­rus

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Publicado em: 21/04/2020 Ă s 12:10 | Atualizado em: 21/04/2020 Ă s 12:10

O estudo inconclusivo da Prevent Senior sobre uso de hidroxicloroquina em pacientes com suspeita de Covid-19 violou os protocolos Ă©ticos de pesquisa e pode indicar fraude cientĂ­fica, segundo o CNS (Conselho Nacional de SaĂºde), Ă³rgĂ£o que integra o MinistĂ©rio da SaĂºde.

A pesquisa da operadora de planos de saĂºde de idosos sĂ³ recebeu autorizaĂ§Ă£o da Conep (ComissĂ£o Nacional de Ética em Pesquisa), ligada ao CNS, no dia 14 de abril. O estudo, porĂ©m, estava em andamento desde o dia 26 de março, e os resultados foram apresentados Ă  imprensa na semana passada, antes da publicaĂ§Ă£o em revista cientĂ­fica.

 

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O CNS diz que estuda enviar para o MinistĂ©rio PĂºblico os documentos referentes Ă  falta de autorizaĂ§Ă£o da empresa para desenvolvimento da pesquisa e os depoimentos que estĂ£o sendo colhidos pela comissĂ£o.

Iniciar um estudo sem autorizaĂ§Ă£o Ă© uma infraĂ§Ă£o Ă©tica. “Ao que tudo indica, Ă© uma fraude cientĂ­fica”, diz Jorge VenĂ¢ncio, coordenador da Conep. “Sabia que nĂ£o era uma pesquisa aprovada pela Conep. Falou-se uma mentira aberta. NĂ£o Ă© uma coisa dĂºbia, ambĂ­gua. É uma coisa muito mais grave. Tentaram apresentar como pesquisa cientĂ­fica algo que nĂ£o Ă© pesquisa cientĂ­fica.”

O conselheiro afirma que uma audiĂªncia com pesquisadores e a Prevent Senior foi realizada nesta segunda (20). A empresa, segundo ele, disse na reuniĂ£o que nĂ£o tem responsabilidade quanto Ă  publicaĂ§Ă£o e que o estudo começarĂ¡ nesta quarta-feira (22). Ainda de acordo com VenĂ¢ncio, a empresa afirmou que a publicaĂ§Ă£o divulgada foi feita com dados de atendimento e que nĂ£o hĂ¡ estudo relativo ao que foi apresentado.

 

SuspensĂ£o da pesquisa

 

Os fatos levaram a Conep a suspender a pesquisa que teria inĂ­cio, segundo a Prevent, na quarta.

“Eles disseram que nĂ£o foram eles que apresentaram. Que quem apresentou teria sido um funcionĂ¡rio deles”, diz o conselheiro. Segundo ele, o primeiro autor do estudo, o cardiologista Rodrigo Esper, pode ser chamado para depor.

O CNS afirma que solicitou que a empresa faça notas pĂºblicas esclarecendo o assunto.

Questionada pela Folha nesta segunda (20), a Prevent Senior afirmou que a pesquisa foi, sim, divulgada pela empresa e que “todos os protocolos clĂ­nicos desenvolvidos no Ă¢mbito da Prevent Senior respeitam as regras oficiais e as boas prĂ¡ticas mĂ©dicas e de Ă©tica em pesquisa e sĂ£o submetidos ao Ă³rgĂ£o regulador”.

 

Defesa da empresa

 

A empresa tambĂ©m diz que “o manuscrito disseminado na Ăºltima sexta-feira (17 de abril) atribui, incorretamente, um nĂºmero de protocolo na Conep. Os dados sobre pacientes contidos no documento nĂ£o se referem, portanto, Ă  pesquisa autorizada pela comissĂ£o do MinistĂ©rio da SaĂºde. Trata-se de nĂºmeros reais de atendimento, mas nĂ£o vinculados ao protocolo clĂ­nico relativo ao nĂºmero da Conep.”

Na sexta (17), apĂ³s a Prevent Senior divulgar os dados do estudo para a imprensa, o diretor-executivo da empresa, Pedro Batista, disse à Folha que a pesquisa “traz uma resposta terapĂªutica segura para pacientes” de grupos de risco e com casos leves Covid-19. A afirmaĂ§Ă£o encontra eco nas falas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que tem defendido a hidroxicloroquina como soluĂ§Ă£o para a pandemia apesar da falta de evidĂªncias cientĂ­ficas sĂ³lidas sobre sua eficĂ¡cia.

 

Bolsonaro divulgou a pesquisa

 

No domingo (19), Bolsonaro chegou a compartilhar algumas informações que foram divulgadas pela empresa sobre a pesquisa.

A empresa tambĂ©m afirma à Folha que “o objetivo da Prevent Ă© sempre o de compartilhar com outras instituições de saĂºde os resultados positivos obtidos no tratamento da covid-19”.

“Todos os esclarecimentos serĂ£o prestados Ă  Conep e permitirĂ£o possĂ­veis ajustes para, em conjunto, encontrarmos respostas apropriadas para o combate ao novo coronavĂ­rus”, diz a empresa, em nota.

 

Metodologia usada

 

A suposta pesquisa da Prevent Senior foi feita com mais de 600 pacientes com suspeita de Covid-19, dos quais 412 tomaram a combinaĂ§Ă£o de drogas hidroxicloroquina e azitromicina.

Segundo especialistas ouvidos e o prĂ³prio autor do estudo, Rodrigo Esper, nĂ£o era possĂ­vel concluir se os medicamentos tinham efeito contra o novo coronavĂ­rus por causa de falhas metodolĂ³gicas.

Um dos problemas Ă© que os pesquisadores nĂ£o sabem se todos os 636 pacientes do estudo realmente tinham Covid-19.

AlĂ©m disso, todos os pacientes do estudo foram convidados a receber o medicamento, e o que se recusaram formaram um grupo Ă  parte para comparaĂ§Ă£o.

Em estudos padrĂ£o ouro, os voluntĂ¡rios sĂ£o divididos aleatoriamente em grupos diferentes e nĂ£o sabem se estĂ£o recebendo o tratamento verdadeiro ou placebo, para evitar qualquer viĂ©s.

A empresa havia afirmado que o estudo seria publicado em uma revista cientĂ­fica de renome. Questionada sobre mais detalhes da publicaĂ§Ă£o, porĂ©m, disse que a pesquisa sĂ³ havia sido enviada Ă  revista e ainda nĂ£o tinha obtido resposta.

 

Falhas na pesquisa

 

A reportagem tambĂ©m apontou a incongruĂªncia de registro da pesquisa no registro internacional para estudos clĂ­nicos, no qual constavam divergĂªncias em relaĂ§Ă£o ao nĂºmero de pessoas que fazem parte da pesquisa e suas datas de inĂ­cio e de fim.

Segundo o registro, que tambĂ©m sĂ³ foi submetido na Ăºltima segunda (13), o estudo sĂ³ começaria nesta segunda (20), com um nĂºmero inferior de pacientes em relaĂ§Ă£o ao que consta no estudo que a Prevent Senior enviou à Folha e que jĂ¡ teria começado.

AtĂ© o começo do mĂªs de abril e desde o inĂ­cio da epidemia do novo coronavĂ­rus no Brasil, a Prevent Senior ganhou atenĂ§Ă£o pela concentraĂ§Ă£o de mortes pela Covid-19 em seus hospitais em SĂ£o Paulo.

O plano de saĂºde chegou a concetrar 58% das mortes pela doença em SĂ£o Paulo.

No fim de março, o MinistĂ©rio PĂºblico de SĂ£o Paulo tambĂ©m instaurou um procedimento investigatĂ³rio criminal para apurar a possĂ­vel omissĂ£o por parte das equipes mĂ©dicas do hospital Sancta Maggiore, da rede Prevent Senior, em ações obrigatĂ³rias para conter a proliferaĂ§Ă£o do novo coronavĂ­rus.

Uma fiscalizaĂ§Ă£o de equipes de saĂºde municipal no hospital achou pacientes infectados pela Covid-19 cuja situaĂ§Ă£o era desconhecida pelos Ă³rgĂ£os de controle de doenças infectocontagiosas, notificaĂ§Ă£o que Ă© obrigatĂ³ria por lei.

A empresa chegou a ser criticada pelo ex-ministro da SaĂºde, Luiz Henrique Mandetta.

 

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Foto: BNC Amazonas