O muro tem dono: crítica aos isentões
"Os 'isentões' têm um lado, mas, por conveniência, interesses ou por covardia e medo, fingem não tomar partido", defende o sociólogo Aldenor Ferreira. Leia em seu artigo semanal

Por Aldenor Ferreira*
Publicado em: 23/08/2025 às 02:02 | Atualizado em: 22/08/2025 às 20:04
A geometria nos ensina que tudo possui um lado – seja o de dentro ou o de fora, o de cima ou o de baixo. Na política, não é diferente: cada pessoa tem o seu lado. O problema é que muitas não têm coragem de assumir publicamente aquilo em que acreditam e defendem, preferindo a confortável posição da suposta neutralidade. São os chamados “isentos”.
A neutralidade não existe, nem na ciência, nem na política nem em qualquer outra esfera da vida. Uma postura “neutra” já é, em si, uma escolha; afinal, decidir não se posicionar é, também, uma tomada de posição. Lembremo-nos da conhecida metáfora do muro:
Dois grupos discutiam acaloradamente, um de cada lado de um muro. Um homem, sem querer se envolver, subiu no muro para “não tomar partido”. De repente, alguém de um dos grupos perguntou: “E você? Vai ficar aí em cima do muro até quando?”. O homem respondeu: “Estou bem aqui, não vou me meter”. Então, o “dono do muro” apareceu e disse: “Ótimo, você já está do meu lado, pois o muro é meu”.
A neutralidade não é neutra
A pessoa que assume uma posição de neutralidade não é neutra coisa nenhuma. É apenas alguém covarde ou, no limite, de mau-caráter. Os “isentões” têm um lado, mas, por conveniência, interesses ou por covardia e medo, fingem não tomar partido. Buscam colher benefícios de ambos os lados. Trata-se, no entanto, de uma postura arriscada, pois ficar em cima do muro é correr o risco de levar tiro de ambos os lados.
A posição de neutralidade é apenas uma aparência, a parte visível do iceberg. É uma pseudoconcreticidade, para lembrar o conceito de Karel Kosik. Talvez a psicologia possa ser a ciência com maior capacidade teórica para explicar tal comportamento.
É curioso notar que os que se dizem isentos – que não se assumem de esquerda, direita ou qualquer outra posição política –, quase sempre adotam discursos e posturas alinhados às ideologias da direita ou da extrema-direita. Quem opta pelo alto do muro, inevitavelmente, prejudica alguém ou um grupo social. Na política, o efeito costuma ser desastroso.
Nossa história recente
Nossa história política recente está marcada por episódios emblemáticos de neutralidade em momentos decisivos. Basta lembrar dois casos ilustrativos: em 2018, Ciro Gomes preferiu embarcar para Paris a assumir uma posição clara no segundo turno das eleições presidenciais. Já em 2010, Marina Silva recorreu ao termo “independência” para justificar sua neutralidade diante da disputa entre Dilma Rousseff e José Serra.
Marina também ilustra o que mencionei anteriormente: quando o “neutro” resolve sair de cima do muro, quase sempre desembarca do lado direito dele. Em 2014, ao ficar em terceiro lugar no pleito, Marina apoiou Aécio Neves no segundo turno.
Dilma venceu por margem estreita, e Aécio, ao não reconhecer imediatamente o resultado e pedir recontagem, inaugurou no país uma era de ódio político e de questionamento do sistema eletrônico de votação. Os efeitos daquela atitude foram devastadores para a democracia brasileira.
Considerações finais
A figura do “isentão” é perigosa não apenas por sua covardia, mas pelo efeito que sua omissão provoca na vida política e social. Ao se recusar a assumir uma posição clara, ele legitima estruturas de poder injustas e abre espaço para que ideias autoritárias avancem sem resistência. A neutralidade, portanto, é um ato político e, na maioria das vezes, um ato que favorece o lado mais opressor.
Se a democracia se fortalece com o debate e a participação ativa, ela se enfraquece com a omissão. Ficar em cima do muro pode parecer seguro, mas é, na prática, escolher um lado sem ter a coragem de dizê-lo em voz alta. Em tempos de crise política, é preciso entender que não há muro suficientemente alto para a proteção das consequências das escolhas e das não escolhas equivocadas.
Tenho dito!
*O autor é sociólogo.
Arte: Gilmal