Poeta lança haicais atentos às contradições cotidianas

Os mesmos versos que exortam a beleza da natureza servem para pensar sobre a feiura dos que a agridem

Poeta Carlos Guedelha em lançamento do livro Açu/mirim (Editora Manauara), lançado ontem, no Buffet Excelência (rua Curitiba, Nossa Senhora das Graças).

Wilson Nogueira, do BNC Amazonas

Publicado em: 25/08/2024 às 12:08 | Atualizado em: 25/08/2024 às 12:08

Os mesmos versos que exortam a beleza da natureza servem para pensar sobre a feiura dos que a agridem.

É dessa matéria bela e contraditória que são feitos os haicais do poeta e professor Carlos Guedelha, autor do livro Açu/mirim (Editora Manauara), lançado na quinta-feira, 22, no Buffet Excelência (rua Curitiba, Nossa Senhora das Graças).

Guedelha reuniu professores, estudantes e artistas para celebrar os poemas que saltaram das suas observações cotidianas para o livro, na forma de haicais.

Tradição japonesa

Os haicais são um gênero da tradição poética japonesa que pinça momentos singulares do cotidiano, principalmente observados nos movimentos da natureza, que gravados em palavras geram conhecimento eterno.

Diferentemente do poeta lírico convencional, que trabalha com sentimentos e emoções, o haijin (tecedor de haicais) trabalha com os registros de sensações.

“O bom haicai é como uma pintura: podemos até não entendê-la plenamente, mas gostamos dela”, acentua o poeta Zemaria Pinto, membro da Academia Amazonense de Letras (AAL).

Arte no Amazonas

No Amazonas, explica Zemaria, o primeiro registro de haicais em livro é de 1957, na obra Argila, do poeta e contista Benjamin Sanches (1915-1978), ativista intelectual do Clube da Madrugada (CM).

Ainda no Amazonas, outro poeta de renome nessa arte é Luiz Bacellar (1928-2012), também do CM, que só veio a publicar haicais em 1963, mas lembrava que os escrevia desde pequenininho.

Olhar crítico

“Observo o mundo ao meu redor com olhar crítico e atento em traduzir em palavras as pequenas ocorrências cotidianas, e os haicais saem das minhas mãos como pequenas pinturas verbais”, explica Guedelha na apresentação do livro.

Na primeira sessão, Caaeté/imagens da floresta, o autor pinta as palavras com as cores da floresta e delas surgem as mais surpreendentes e estranhas sensações.

não mexer em casa
de cabas assanhadas
é o fim da picada

….

moribundo em fúria
não suporta solidão
é sempre multidão
Abraço da morte

Em outro flagrante da mesma sessão, o autor convida o leitor à reflexão profunda a respeito da ação dos seres florestais em seus ecossistemas, da qual a vida animal, entre elas as dos humanos, não está apartada.

“ingrato apuí:
lento abraço da morte
em seu braço forte

sina do apuí
de ser vil parasita:
matar para viver”

Serpentes

Em poema destacado pelo autor, o leitor tem acesso à uma vista privilegiada a partir dos céus que, antes do “pássaro de aço”, só poderia ser percebida pelos xamãs em sonhos cósmicos.

Não é à toa que os indígenas antes da invasão colonizadora denominavam o Paranaguaçu (hoje mais conhecido como Amazonas) de “mãe de todas as serpentes”.

Iguais aos xamãs são os poetas que viajam para outros mundos e de lá trazem a beleza para se contrapor ao pesadelo da vigília.

“vista de avião
cobra grande encantada
rio Juruá

….

“pariu outra serpe
Da mesma cor de cajá,
o Tarauacá”

Violência

Na sessão Tabussu: flagrantes da cidade, Guedelha expõe clics cujas delicadeza e afeto reverberam como denúncia e inquietação com a violência do cotidiano citadino.

“um anjo voando
voo rasante forçado
caiu na calçada

coberto de sangue
um corpo sem vida
foi feminicídio”

É assim, com a maestria de um haicaísta experiente, que Guedelha apresenta 80 poemas para o deleite dos iniciantes e iniciados nessa arte que conquista leitores pelo humor, simplicidade e reflexão.

Fotos: Rosário Nogueira