Seu Narciso vendeu um aviĂ£o e continua pobre
14.5.2004 | "Antes, diz que ainda ouviu gritos, a explosĂ£o e depois o silĂªncio. Conta ainda que um clarĂ£o se sucedeu perto dele"

Publicado em: 17/05/2021 Ă s 04:00 | Atualizado em: 17/05/2021 Ă s 06:48
Por Neuton CorrĂªa
Seu Narciso tem 65 anos e continua vivendo assim como chegou Ă Vila Nova hĂ¡ 25 anos.
A vila, na verdade, nĂ£o Ă© bem uma vila. É um lugar onde o nĂºcleo comunitĂ¡rio nĂ£o tem mais de 30 casas.
Chama-se vila porque a Ă¡rea, distante de Manaus, por estrada, cerca de 60 quilĂ´metros, antes, havia sido batizada de Conquista TrĂªs Galhos. O nome era homenagem aos dois igarapĂ©s que cortam, limitam o terreno com outra comunidade e matam a sede dos moradores, com uma Ă¡gua cristalina e geladinha.
Pois o seu Narciso, no dia 14 de maio de 2004, assim como as outras doze famĂlias que vivam ali, por volta das 19h daquela data, quase morreu do coraĂ§Ă£o, quando perto de sua casa foi assustado por uma explosĂ£o apavorante.
Era um aviĂ£o da Rico que acabara de cair ali, mudando de vez a vida simples e brejeira da Conquista TrĂªs Galhos. E mudando tambĂ©m o nome original do lugar.
Trinta e trĂªs pessoas morreram. Esse Ă© o nĂºmero oficial do acidente: trinta passageiros e trĂªs tripulantes. Mas, para a comunidade, foram 34 vĂtimas fatais.
Vou contar essa histĂ³ria, depois volto a falar do seu Narciso.
Testemunha ocular – a 34ª vĂtima fatal
EntĂ£o.
A trigĂ©sima quarta vĂtima foi o seu AntĂ´nio, que deveria ter uns 60 anos de idade.
Nessa noite, naquela hora, ele estava ali perto, sentado na frente da casa dele, quando viu o aviĂ£o em chamas cruzou a sua vista.
Instantes depois, o voo 4815 terminou sua viagem batendo num imponente pé de tauari, que, naquele momento, ficou intacto.
No entanto, anos depois, o centenĂ¡rio tauarizeiro perdeu as folhas e tombou, partindo-se a cerca de seis metros da terra.
Nessa noite, o AntĂ´nio sentiu um desconforto com apertos no peito e, no dia seguinte, levado para um hospital da capital.
O diagnĂ³stico foi de um princĂpio de infarto.
TrĂªs semanas depois, ele nĂ£o resistiu e, sem ser ouvido pela investigaĂ§Ă£o, morreu.
Ao invĂ©s de caça, o aviĂ£o
AlĂ©m do seu AntĂ´nio, hĂ¡ outro personagem importante desse dia, o JoĂ£o. Ele foi o primeiro a chegar no local da tragĂ©dia, segundo os moradores do lugar.
O JoĂ£o estava numa espera. VocĂªs sabem o que Ă© uma espera? É o local preparado para caça noturna.
JoĂ£o, falecido hĂ¡ um ano, Ă Ă©poca com 30 anos, havia acabado de chegar no moital.
Mas, ao invĂ©s de paca, tatu e veado, viu Ă sua frente uma explosĂ£o.
Antes, diz que ainda ouviu gritos, a explosĂ£o e depois o silĂªncio. Conta ainda que um clarĂ£o se sucedeu perto dele e que esse clarĂ£o feito dia o fez chegar fĂ¡cil ao local do acidente.

O local da tragédia, hoje
Ontem, sem me recordar da tragĂ©dia, fui parar na Vila Nova, que nĂ£o conhecia.
Fui para participar do aniversĂ¡rio de 5 anos do filho do CamaleĂ£o, o Amarildo, um dos primeiros moradores da Conquista TrĂªs Galhos, o primeiro presidente da comunidade.
Uma cruz com uma placa me chamou atenĂ§Ă£o, na chegada.
Passei e, um pouco mais adiante, quando chegamos ao fim da viagem, perguntei do JĂºnior, tambĂ©m fundador do lugarejo, o que era aquilo.
Naquele 14 de maio de 2004, eu trabalhava no jornal DiĂ¡rio do Amazonas, quando, por volta das 20h, surgiram as primeiras informações da tragĂ©dia.
_ “O aviĂ£o”
_ “O da Rico?”
_ “Foi aqui”
Mas, nĂ£o imaginava que havia sido tĂ£o perto de Manaus. E tĂ£o fĂ¡cil de se chegar ao local.
Pois Ă©.
Ali, ainda hoje hĂ¡ destroços da aeronave, pedaços do motor, camisa, sapatos, tĂªnis, atĂ© uma mĂ¡scara daquelas que os comissĂ¡rios de bordo mostram pra gente antes do aviĂ£o partir.
Encontrei ali um pedaço de osso de mais ou menos cinco centĂmetros do que poderia ser uma junta humana.
AlĂ©m disso, muitas histĂ³rias. Cada morador tem a sua e faz questĂ£o de contar.
HĂ¡ uma coisa comum nos relatos 17 anos depois. O cheiro forte que exalava dos corpos e que, por dias, impediu a aproximaĂ§Ă£o dos curiosos.
Vendedor de aviĂ£o
Mas, a histĂ³ria que mais me prendeu a atenĂ§Ă£o foi a do seu Narciso, que vendeu o aviĂ£o e que continua pobre.
_ “Como?”
Em coro, me responderam:
_ “Ele vendeu o aviĂ£o. TĂ¡ aqui o Goiaba, filho dele”, apontou-me um homem com uma espingarda na mĂ£o, perto de uma fornalha que dia e noite faz carvĂ£o vegetal, na entrada da picada que levava para o aviĂ£o.
E o Goiaba, prontamente:
_ “Ele levava os destroços pra casa e de lĂ¡ saĂa pra vender na sucata. Mas, nĂ£o era sĂ³ ele que fazia isso, nĂ£o”, disse o filho do seu Narciso.
Hoje, apenas as histĂ³rias marcam a tragĂ©dia do dia 14 de maio de 2004.
Fotos: Neuton CorrĂªa/BNC Amazonas