Transferência de pacientes de Manaus foi baseada em ‘ataque terrorista’

O transporte de pessoas infectadas para outros estados no país foi esquematizado a partir de uma experiência em uma evacuação médica encenada durante os Jogos Olímpicos de 2016

Transferência de pacientes de Manaus foi baseada em 'ataque terrorista'

Publicado em: 30/04/2021 às 14:06 | Atualizado em: 30/04/2021 às 16:32

Homem de confiança do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, o coronel Luiz Otávio Franco Duarte afirmou ao Ministério Público Federal (MPF) que o plano de transferência de pacientes com covid-19 em Manaus foi elaborado com base em uma simulação de ataque terrorista feita por ele há cinco anos.

Em depoimento ao qual O GLOBO teve acesso, o ex-secretário de Atenção Especializada à Saúde disse que o transporte de pessoas infectadas para outros estados no país foi esquematizado a partir de sua experiência em uma evacuação médica encenada no Maracanã, no Rio, durante os Jogos Olímpicos de 2016.

Franco Duarte foi ouvido na condição de investigado no âmbito de um inquérito movido pelo MPF para apurar as responsabilidades de agentes públicos na crise sanitária do Amazonas no início do ano.

Ao ser questionado pelos procuradores sobre quando foi elaborado o plano para transferência de pacientes, o ex-secretário narrou de que maneira a estratégia foi colocada em prática.

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“Se falar para mim: ‘Secretário, o senhor fez que plano? Não, o meu plano foi um plano da experiência que eu tenho nos Jogos Olímpicos. O senhor acompanhou os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016? — indagou ele ao procurador, continuando: — Eu fiz parte de uma simulação de uma evacuação aeromédica. Eu simulei um acidente no Maracanã, que seria uma guerra terrorista, simulei um ato terrorista e em seguida tomei as medidas antiterroristas. Numa delas era a evacuação aeromédica, simulei isso no Maracanã. Então, eu tinha uma experiência de evacuação rápida.”

O secretário contou que isso foi feito em questão de “horas”, após a empresa White Martins alertar sobre o colapso de oxigênio em uma apresentação no Centro Integrado de Comando e Controle (CICC), entre os dias 12 e 13 de janeiro.

Sabe-se, no entanto, que a equipe do ex-ministro Pazuello recebeu um ofício da companhia no dia 8 de janeiro alertando sobre a insuficiência dos estoques de oxigênio.

Além disso, no dia 11, representantes da empresa se reuniram com Pazuello, segundo depoimento de um executivo da White Martins.

“Então peguei logo aquilo que eu simulei e falei: “Olha, temos que pensar no circuito de ambulâncias, pensar na aeronave que irá”. Isso aí foi em horas.”

Doutor em epidemiologia e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Paulo Petry afirma que situações aeromédicas simuladas a partir de um ataque terrorista e aquelas decorrentes de uma pandemia são distintas.

Além disso, Petry frisa que o Ministério da Saúde teve tempo para preparar previamente um plano adequado de transferência de pacientes, sobretudo levando em consideração os relatos de pacientes infectados com uma nova cepa do coronavírus.

“São coisas completamente diferentes. Estamos falando de uma doença infecciosa que é altamente contagiosa. Em um ataque terrorista, por exemplo, não há esse fator de contágio. Um ferimento, uma bomba, são coisas absolutamente diferentes.  A situação só chegou ao estágio que chegou de saturação e colapso do sistema de saúde, porque houve imprevidência prévia. Não é uma bomba que cai de repente. As coisas poderiam ser previstas, e um planejamento estratégico deveria ter sido feito com antecedência, antes do caos. Essa era uma tragédia que vinha se anunciando e deveria ter havido um planejamento.”

Demora do ministério

Em uma ação movida contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e outros cinco acusados, incluindo Franco Duarte, o MPF afirma que o Ministério da Saúde esperou o agravamento da crise em Manaus para dar início ao plano de transferências.

Documentos reunidos ao longo da investigação mostram que, no dia 12 de janeiro, a pasta já sabia que seria preciso transferir os pacientes, mas  só iniciou a elaboração de um plano de evacuação após doentes morrerem por asfixia pela falta de oxigênio hospitalar.

Ao longo do depoimento, Franco Duarte afirma que a operação de transferências era muito complexa devido à existência de diversos fatores envolvidos como a anuência dos familiares dos pacientes.

“A tomada de decisão da evacuação do paciente é complexa. E quem tomou a decisão, o CICC (Centro Integrado de Comando e Controle), inclusive a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) estava presente. Tomaram a decisão e começamos os trâmites. Se, realmente, estivesse todo mundo conscientizado que a melhor decisão era essa, eu não faria a primeira decolagem com apenas nove pacientes. Eu tinha lugar para 18. É uma ação muito complexa e com o tempo fomos melhorando o processo”, argumentou.

Os procuradores questionaram Franco Duarte se ele realizou reuniões com autoridades do Amazonas entre os dias 28 de dezembro, quando o Ministério da Saúde já tinha identificado problemas no estado, e 3 de janeiro, quando a primeira comitiva chegou a Manaus. Em sua defesa, Franco cita como justificativa por não ter feito reuniões nesse período o fato de ter sido demandado pelo ex-ministro Eduardo Pazuello para resolver o fechamento orçamentário da pasta.

“Dentro da secretaria também recebia a missão de encerrar o exercício financeiro do Ministério da Saúde, que era uma grande preocupação do ministro, porque nós estávamos diante de dois orçamentos. E o senhor sabe, o Orçamento de Guerra no montante de R$ 43 bilhões”, disse, complementando:

“Foi decisão do ministro: “Franco Duarte vai auxiliar também no exercício financeiro e vamos definir uma secretária médica para que lidere a assistência a Manaus” — afirmou. —Indiretamente, poderíamos até mesmo já pensar no orçamento inicial do ano para atender Manaus. O ministro falou: “Não adianta, também temos que ter o mínimo de orçamento para atender Manaus, porque Manaus vai ter grandes despesas nesse início do ano”.

O orçamento também é citado como justificativa pelo secretário para a demora no envio a uma comitiva do Ministério ao estado. Franco Duarte afirmou que foi preciso que a pasta resolvesse impasses orçamentários para viabilizar a compra de passagens, uma vez que a viagem ocorreria já no exercício de 2021. A versão traz uma divergência em relação à alegação que consta no “Plano Manaus”, um documento produzido pelo próprio Ministério da Saúde. Nele, a justificativa é que a viagem ocorreria após o Ano Novo por conta das eventuais trocas de secretariado na administração municipal em janeiro deste ano. Procurado, Franco Duarte preferiu não comentar.

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Foto: Erasmo Salomão / MS